domingo, 4 de outubro de 2009

Um dia cheio

- Ponte danada, ao menos uns quinze minutos pro trânsito escoar. Vamos aproveitar pra ensaiar de novo. Temos que fazer uma boa leitura, hoje.

O subtexto é: somos apresentadores de um programa jornalístico, de tv. Voz feminina e masculina, intercalando. Você começa:


- Por volta das dezoito horas, o bar do Everaldo, no largo do Campo Limpo, zona sul, está com a televisão sintonizada. Vários fregueses bebem assistindo ao noticiário.


- Pela avenida Carlos Lacerda, ônibus e lotações passam transportando os moradores da região. A periferia paulista estende-se além da divisa com os municípios vizinhos de Taboão e Embu.


- Densamente povoado, os dilemas sociais são patentes. A carência de ganho real é o maior problema enfrentado por todos. Sejam jovens ou adultos. Homens e mulheres se equilibram no meio fio da vida.


- Rafael, trinta anos, moreno forte, exibe respeito. Ele entra no bar e cumprimenta as pessoas. Teve um dia cheio. Sem dinheiro pra cerveja, conta moedas e pede um rabo de galo. Acomoda-se ao canto no balcão, e começa a refletir...


- Viera ao posto de saúde trazer a companheira. Ela, Iracema, empregada doméstica, durante toda a noite sofreu com náuseas e tontura...


- De manhã, não foi trabalhar. Ficou prostrada na cama. Nas duas vezes que tentou ir a cozinha sentiu-se desmaiar. Fraca, só não caiu porque conseguiu apoio na pia.


- Voltou ao quarto com a ajuda da vizinha, que divide o mesmo pequeno quintal e, por sorte, estava estendendo roupas no varal em frente à porta aberta.


- Rafael chegou em casa às 13 horas. Havia saído em busca de trabalho. Ultimamente vive de bicos na construção civil, mas conheceu épocas melhores quando empregado metalúrgico.


- Foi alertado na entrada por dona Terezinha. Da necessidade em levar Iracema a um médico, o mais rapidamente possível.


- Tratou arrumar carona com amigos. Amparada, Iracema entrou no carro. E, logo depois, estavam sendo atendidos na sessão de emergência.


- Diante do estado dela, o atendente providenciou uma cadeira de rodas, que, Rafael, empurrando, a conduziu pelo corredor lotado de pacientes.


- Para sua surpresa, o atendimento fora rápido. Uma forte gastrite, talvez, diagnosticou o doutor. Porém, o pedido de um exame de gravidez o deixou preocupado...


- Pensou nas dificuldades de mais um sustento. Tinham dois filhos e a necessidade habitava a pequena casa alugada. Injetada a droga a fim de conter o vômito, levou a mulher para tomar soro.


- Foi preciso aguardar. A sala estava lotada, não havia sequer um lugar.


- De repente, um médico exige que Iracema se levante. Pois só havia aquela cadeira de rodas no posto e outro paciente, em pior condição, necessitava.


- Rafael, então, pediu uma cadeira comum. Não tinha nenhuma. Iracema não conseguia se manter em pé. Tocou voltar ao corredor e uma pessoa cedeu espaço no assento do banco.


- Passado o tempo, uma certa irritação começou a caceteá-lo. Reclamou mais de uma vez, até que surgiu uma vaga. Iracema ficou lá. Pálida, zonza, braço estendido, observando a conta-gota do frasco e o líquido canalizado à veia perfurada.


- Agora, enquanto aguardava, Rafael bebericava. Na tevê, o apresentador, aos gritos, anunciava mais uma rebelião na Febem do Tatuapé. Interessados, os clientes acompanhavam o desenrolar da situação.


- Centenas de menores ganharam o telhado da instituição. Desafiantes, haviam queimado colchões. Quebrado vidros e móveis.


- O locutor narrava toda espécie de adjetivos: “Estão queimando o dinheiro público. É o contribuinte que paga a conta dos safados”.


- Exigindo ação enérgica do governador, da polícia, bradava: “Temos que acabar com a desfaçatez desses bandidos.”


- Quando a tropa de choque se posicionou com cachorros, cavalos, escudos, armas e cassetetes, tendo a intenção de invadir; o delírio emitido na telinha atingiu os espectadores:


- Agora esses vagabundos vão ver o que é bom pra tosse.


- Rafael sentiu-se incomodado. Lembrou dos amigos que cruzaram a linha da lei e da ordem. Dos que estão presos. Dos que morreram. Pensou em quantas vezes esteve perto de empunhar uma arma e partir pro crime.


- Nunca o fez.


- Vê a reportagem desejando que os 1800 infratores se unam de mãos dadas no teto e chamem atenção às suas reivindicações. Que são também os reclamos de tantos milhões de brasileiros...


- Assim como ele, os filhos, Iracema. E todos os marginalizados dentro do próprio país.


- O sentimento, mistura de angústia e revolta, teve origem naquele instante. E desejou sair dali, o mais rápido possível.


- Nisso, casualmente, é interceptado por um homem: “Se eu sou o comandante da polícia, mando explodir tudo e acabo com essa raça de malandros”.


- Sem dizer palavra, Rafael não pensou. Desferiu portentosa cabeçada no nariz do sujeito, que, nocauteado, ficou estendido, sangrando, contorcendo-se em dor.


- Sob efeito da expectativa, todos no bar ouviram-no dizer, antes de sair:


- Povinho de merda!


- Muuuuugi boi...


- Mééééé...


- Cócócórócócó...


- Coin,coin, coin...


- Auauuuu...

Marco Pezão

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