I LOVE LAJE NO FOMENTO À CULTURA DA PERIFERIA
Mais um dos
objetivos firmados no projeto Fomento à Cultura da Periferia, edição 2016, foi
realizado com sucesso. O Espaço de Convivência Cultural I Love Laje, durante
dois anos, criou uma série de atividades na área de teatro: um workshop ministrado pelo professor e diretor Fernando Faria, da UNILA;
...oficinas semanais e intervenções externas com cenas breves, buscando encontrar jovens da região de Campo Limpo interessados na montagem cênica do texto de
autoria de Marco Pezão.
Somaram-se
tentativas até que, no segundo semestre de 2018, chegou à Livraria Poesia FC, no
I Love Laje, um grupo de nome Alquimia, tendo por propósito a cessão do espaço
para desenvolverem seus ensaios.
De acordo com nossa proposta de fomento, reservamos
a data pretendida e fomos nos conhecendo melhor.
Sugerimos um
dia para a leitura dramática da obra. Conversamos sobre possibilidades e, embora as dificuldades,
o entusiasmo tomou conta dos envolvidos. Foram três meses de comprometimento
para dar vida a quatro personagens: Moscou, Lídia, Leonor e Samuel.
Transformando-se a cada ensaio, os atuantes, Carlos Monteiro, Daline Silvestre,
Maria Raiane de Andrade e Geovanni Viana contaram com a direção de Alai Diniz.
Na iluminação e som, o Alberto Gomes fez parte dessa viagem repleta de
aprendizado.
A conclusão do trabalho e sua apresentação aconteceu em 23 de
fevereiro para uma plateia ávida por novidades.
O enredo se
desenvolve em um apartamento no centro de São Paulo. Moscou retorna triunfante depois de quatro meses de total ausência. Traz consigo duas malas repletas de dinheiro, fruto de um assalto que lhe rendera 200 milhões de reais.
Porém, novos fatos revelaram-se durante sua ausência. O reencontro de Lídia e Leonor fez ressurgir uma paixão adormecida.
Antes, sem grana para bancar seus projetos, Moscou arquitetara o mirabolante roubo com vistas a construir um teatro numa comunidade da periferia, onde pudesse desenvolver sua poesia e teatralidade. Um plano real e absurdo foi colocado em prática.
Deus criou o homem ou o homem criou o Deus que o criou? Onde nasce o pensamento? A traição da amada o põe em alerta. Dúvidas o assolam.
Surpreendido, Moscou não contava com a investida do primo Samuel, advogado decadente, que o ironiza quanto aos objetivos destinados àquela fortuna.
"Investir em poesia? Construir teatro na periferia? Somente uma mente lunática é capaz de conceber tamanho disparate. Ainda bem que apareci para que tal blasfêmia não se consumasse. Dinheiro deve servir o refinado prazer."
Seguro de si, Samuel pretende eliminar Moscou de forma sarcástica.
"Atenção, primo! Veja os requintes de sua derradeira e mórbida viagem. Leve consigo a imagem do meu gozo!"
Prestes a disparar, num momento de distração, Moscou pega um revólver enrustido e mata o concorrente.
"O poeta tem a tarefa profética de levar aquilo que é mortal e isolado à vida infinita. O acaso ao legitimo. Luz e trevas, céu e inferno, Kafka."
Os diálogos que permeiam as ações refletem questionamentos quanto a ordem política estabelecida.
"Sentido o gosto do sangue, não há como cessar o galope da morte. Venham meninas, refaço o misancene e deponho o berro em favor da paz. Um brinde..."
Entre amar e matar as amantes, Moscou preferiu a primeira opção. Porém, Leonor, não disposta a ceder Lídia, decide mudar o rumo da história. Toma posse da arma em cima da mesa...
"Mulher é comida, mas come também", diz ao apertar o gatilho. Decepcionando-se ante o tiro que pipocou.
"Assinar o final do enredo? Não ia dar esse mole pra você, né Leonor. A arma está travada. Feito folhas em branco, nas páginas da vida tudo cabe. Se alinhem mulheres, eu não as quero curvadas. O egoismo, Lídia, o egoismo, Leonor, é o grande câncer da humanidade..."
"A violência está enraizada nos confins dos homens, à flor da pele pra qualquer emergência. Os donos do planeta, os donos do planeta, em que escritórios se escondem?...
Só a poesia salva... só a poesia salva... É dinheiro que você quer..."
Após a apresentação, o bate papo. Importante constatar o interesse das pessoas, mostrando o quanto é viável a produção teatral na periferia.
A inauguração do espaço cênico do I Love Laje abre espaço para novas realizações, visando sempre incentivar a formação de protagonistas e público.
Giovane, Carlos, Maria, Daline e Alai tornando possível uma nova história, ainda a ser contada por quem assim o desejar.
Comentários:
Ator Carlos
Monteiro (Moscou)
O que eu
posso relatar desta experiência?
Foi algo
saboroso, orgástico. A peça: É DINHEIRO QUE VOCÊ QUER? transcendeu minhas
expectativas. Através desta dramaturgia, eu pude conhecer Pezão (articulador histórico da nossa cultura territorial) e Alai. Ambos seres poderosos com suas
armas poéticas.
Conhecemos o Espaço I Love Laje. Durante três meses estivemos na espacialidade, transformando o ambiente e nos transformando. No início o espetáculo de longe
não nascia... Com o tempo, conseguimos, através de muito trabalho teatral, criar
uma encenação. A entrega foi simbiótica. Quando eu saia do espaço após os
ensaios, ia para casa preenchido. Quero expressar que foram momentos marcantes
para minha carreira teatral. Hoje posso reconhecer o I love laje como um espaço
cultural da região do Campo Limpo.
Atriz Daline
Silvestre (Lídia)
Foram
momentos que eu gostei bastante. Pude conhecer pessoas cultas e importantes
para nossa região (Campo Limpo). A peça e os ensaios me deram chance de crescer
artisticamente, modificaram minha essência como atriz. Tivemos uma grande
oportunidade de conhecer o texto e seu autor, e os ensaios eram momentos alegres, tensos e de aprendizado. Um processo importante para que no final, na
apresentação, chegássemos prontos.
Fiquei feliz pelo convite de participar deste projeto. Através do mesmo,
conheci o Espaço de Convivência Cultural I Love Laje, e seres tão preocupados com a nossa
verdade e que acreditam na arte como uma ferramenta de transformação.
Atriz Maria Raiane
de Andrade (Leonor)
Pensando na interpretação de Leonor, em alguns
momentos, foi bem mais fácil. Pois ela tem uma personalidade forte e a todo
momento tenta mostrar que, independente das dificuldades, irá fazer de tudo
pra seguir em frente no seu objetivo. Na peça, sua maior riqueza é Lídia, que a deixa cega de amor e desejo.
Desenvolver a personagem foi uma construção especial. Tendo o roteiro, decorar as palavras e
colocadas na ação, em alguns momentos ficava a pensar se conseguiria transmitir
toda essa intensidade, essa emoção, que o texto proporcionava. Então eu ficava
naquela expectativa de fazer bem certinho. De gravar as marcações. Aí, às vezes, ficava naquela de lembrar algo, mas esquecer de fazer outro. Em alguns momentos
era como um quebra cabeça, mas quando deixava o nervosismo de lado, aí fluía
de um jeito bem mais satisfatório. Natural. E até eu me sentia mais
confiante. Uma das qualidades que vou me lembrar sempre de Leonor é a sua
coragem. Mesmo diante de uma arma apontada para ela, não recuou em seu propósito. Uma projeção incrível. Valeu a pena participar e superar minhas próprias expectativas.
Alai Diniz (Direção)
Desafios fazem parte da vida. Dirigir uma obra teatral pra
quem vive amiúde esta experiência constitui um prazer e um risco. Não que eu
fizesse disto profissão, mas sempre rodeei o teatro com paixão. Ao longo de
minha história pessoal o teatro irrompeu em tempo de agruras, mas o certo é que
fui ocupando essa arte de fazer por gosto e não por carreira. Além disso, só
esporadicamente me circunscrevi a um espaço definido formalmente como teatral...com
luzes e sombra, sonoplastia e criação com público pagante. Portanto, minhas
raízes sempre foram aéreas e livres no campo da arte dramática.
De fato, abracei a performance no gesto de quem ama o que
não está definido entre quatro paredes, mas como ato de intervenção no
cotidiano de um bairro periférico em tempo amargo na juventude; em escolas e, mais tarde, criando a carreira de ARTES CÊNICAS na Universidade Federal de Santa
Catarina, em 2008.
Por isso, aceitar o desafio de dirigir a obra É dinheiro que você quer de Marco Pezão
no contexto do projeto “Do Campo Limpo ao Sintético: Poesia Sem Miséria” marca
pra mim uma ousadia de quem ainda sonha em seguir aprendendo.
O Grupo ALQUIMIA surgiu no Espaço de Convivência Cultural à
cata de um local para uma oficina de Literatura e teatro. Não tardou muito a
que os talentos surgissem e a proposta de realizar uma das finalidades
dramáticas do projeto com eles. Carlos Monteiro; Daline Silvestre; Raiane
Andrade , Giovanni Viana e no suporte
técnico de iluminação e sonoplastia e projeção, Alberto Gomes.
Foram três meses de ensaio e interação entre a Alquimia de
um grupo que já se conhecia e se entrosava com um sujeito feminino
sexisagenário na árdua tarefa de alinhavar desejos com energia, criatividade
coletiva e disciplina. O tempo exíguo para incorporar a palavra que pulsa na
ação, na sexualidade e na angústia utópica envolvia relações de gênero; afeto e
violência, indo do micro ao macrocosmo político, dialogando com nosso tempo no
espaço da periferia, dentro e fora da peça.
Pra que enfatizar algumas dificuldades inerentes ao desafio
de qualquer proposta coletiva, em
situação inter geracional e em
busca de formação de público para esta arte milenar, se, após um trimestre de ensaios, o espetáculo aconteceu?
No dia 23 de fevereiro de 2019, em noite de chuva
torrencial, acudiram ao Espaço de Convivência Cultural I love Laje um público
de 25 a 30 pessoas, em meio a espectadores de Paraisópolis, Taboão e Embu. Quem
ali esteve assistiu a uma entrega por parte dos atores e atrizes; a uma
concentração e ritmo na operação das luzes; som e projeção; a uma recepção que
reagiu aos atos, manifestando-se atenta e á realidade, sem quarta parede e à
ficção. Deu-se a partilha do sensível no aplauso que levantou a plateia,
seguindo-se a um diálogo com o elenco, o dramaturgo e a direção. Missão
cumprida? Ainda não.
Resta o desafio de continuar a trazer o público para
conhecer a dramaturgia local, autores de lastro como Marco Pezão e a reconhecer
no teatro uma ação estética que aprofunda o ser político que há em meio ao caos
e desvarios desse nosso tempo.
Depoimento de ALBERTO GOMES, sonoplasta,
iluminador e contrarregra.
Como definir
“essas experiências” e digo no plural, pois foram de fatos várias delas,
começando pelo texto, cheio de referência a grandes nomes, plural em cultura,
que se divide em camadas, onde quanto mais profundo for seu conhecimento das
artes literárias e poéticas, mais profundo você mergulha na história e ainda
assim, mesmo aquele “leigo” que tem conhecimento superficial, consegue
compreender completamente a mensagem e se tornar alguém capaz de questionar
conceitos sociais, políticos e por que não filosóficos da vida?
Um dos
primeiros desafios como Técnico de som e iluminação “fora os atributos extras”,
ajudar, junto com a equipe, a ver os objetos realmente necessários dentro do
texto, assim como sons obrigatórios e passagens chaves da peça, entre uma cena
e outra, foi determinante para decidirmos o tipo de palco que seria usado,
levando em conta a plateia, o tamanho do palco e iluminação que viria a seguir.
De forma oportuna, Fernando Faria, um amigo diretor da Alai que estava de
passagem apareceu para assistir a um dos ensaios e com várias dicas preencheu
as lacunas e dúvidas que ainda tínhamos.
Agora sim!
Sem nenhum impedimento ou obstáculo toda a peça já estava decorada e estávamos
fazendo as marcações, o desafio final e, na minha opinião, um dos mais
importantes: a música para cada uma das cenas.
Testamos várias e várias e várias e várias, tanto que até mesmo dias
antes da estreia ainda estavam pensando sobre como uma outra opção de música
poderia se encaixar melhor no sentimento que queríamos passar na cena e tudo
saiu de forma grandemente bem-sucedida depois de algumas mixagens e trabalho em
equipe.
Talvez eu
não tenha dito de maneira tão explicita, mas o ponto alto do projeto e o que
fez com que ele desse certo foi a confiança no trabalho em equipe... Mesmo com
os desentendimentos artísticos (se posso dizer assim), conseguíamos unificar as
visões, criando o resultado que foi apresentado. Tudo que tenho é gratidão pela
confiança do Pezão em escolher nosso grupo como ferramenta para trazer à vida a
obra de uma vida. Um texto que ele
trabalhou durante anos, com carinho e determinação, sabendo que um dia ele
seria exibido para uma plateia.
Texto inicial, fotos e edição: Marco Pezão
DO CAMPO LIMPO AO SINTÉTICO
Esse projeto foi contemplado pela 1ª edição do Programa de Fomento à Cultura da Periferia da cidade de São Paulo