Vai vendo. Eu repasso ideia pra carne não dormir. Que verdade se pode contar, que fantasia pode fluir?
- Ô motorista, abaixa o som! Eu quero ouvir a conversa, méééé!!!
- A viagem é longa, narrador de boa memória. Desfia tua história.
- Muuugi, boi, muuugi, boi...
- Cócorocó...
Em campo, na Vila Iasi, tarde de domingo ensolarado, as equipes do São Francisco e Bangu disputam uma vaga nas quartas de finais do concorrido campeonato de Taboão da Serra.
Lamentavelmente desfalcados, os times foram pro jogo sabendo que o empate mataria ambos abraçados.
Os torcedores divididos em distintos blocos alçam suas bandeiras e espalham olhares ansiosos por todo alambrado.
Roquinho, franciscano fiel, de coração corintiano, abandonou o prazer de ir aos grandes estádios, porém, mantém sua paixão pelo futebol varzeano. Compulsivo, não consegue ficar parado a um canto.
O confronto está duro de assistir. A bola, mordida e mascada, não chega aos atacantes. Roquinho coça a cabeça e se aproxima do boteco do Ebrinho:
- Ai, ai, ai, ai, ai: assim não vai, mas eu vou. Ebrinho! Põe aquela que matou o guarda, benta água pra aliviar a tensão. Quebra gelo da minha cerveja. Vê lá!
- Pura ou com limão?
- Cristalina.
Um copo em cada mão, e olho no jogo. Roquinho anuncia:
- O primeiro gole é do santo. Vai São Francisco!!!
Dá uma bicada. Em seguida outra. Pensamento firma e atento à jogada acompanha o meia Mauricio invadir a área, pela direita, pra arrematar no barbante:
– Gooool!!!
Roquinho, braços erguidos, agradece:
- Santa benzida, meu Deus. É gol! O meu santo não falha!
A vitória parcial de 1 a 0 motiva a peleja. O Bangu se lança ao ataque. O São Francisco recua. As divididas trincam mais fortes e irrita o torcedor:
– Esqueceu o cartão em casa? Juiz filho de uma quenga!
Malandramente, o árbitro controla o clima e encerra a etapa inicial.
- Quantos procriadores de gente lotam o ambiente? Não há pasto que chegue.
- Abre a janela pra ventilar a gripe suína, mééééé...
- Boi, segue sua prosa que a bola volta a rolar.
- Muuugi, boi. Muuugi, boi.
Roquinho está inquieto. O resultado mínimo o deixa aflito. Toma lugar ao balcão e pede:
- Ebrinho! Põe mais uma, no capricho!
Segue o ritual, benze o santo. E, ao inchar as bochechas, antes de engolir, teve as pupilas arregaladas diante do chute certeiro, no canto esquerdo, desferido pelo baixinho Lira.
Goool de empate, 1 a 1, vibra a torcida do Bangu.
- Não! Não! Não! Assim, não! Dá mais uma, Ebrinho, que o santo não entendeu! É pro lado de lá, meu santinho!
E tome Bangu! Forçando no ataque, buscando a virada. E tome a “marvada” goela abaixo, quando a bola em lançamento encontra o avante Ferreira, livre de marcação, frente ao goleiro são franciscano, em prenúncio fatal de gol:
- Meu santo, ficou bêbado, é? Entorta o pé do homem, entorta o pé do homem!
Com efeito, o chute saiu com defeito e pra linha de fundo a chance de gol é desperdiçada:
- Ô, meu Chico, fica são! Que susto! Ô santo milagroso, tá no fim do jogo e o empate nada adianta. Marca um gol pra mim que ao invés de um, eu te dou dois golinhos.
Bendita negociata! Rogério se antecipa à zaga e na saída do goleiro bate por cobertura. Arrepiante, a bola em declive descreve chuá na rede. Roquinho dobra os joelhos e no peito inflado desfere socos.
O grito ensandecido de gol fez saltar a artéria do pescoço, e apontando o dedo indicador para o céu profere vibrantes palavras:
- Nosso cavalo não é manco! São Francisco, porreta!
Rojões e abraços, o azul celeste celebra a classificação na vitória em 2 a 1.
Sapiência, dívida com santo se paga! A talagada escorre pela parede e causa indignação alheia:
- Que desperdício é esse? Tá cheio? Dá pra mim que eu tomo!
Mirando o nada, Roquinho engole o restante. Sozinho, caminha na algazarra formada ao longo do portão de saída.
O seu rosto estampa sorriso de quem sabe os mistérios. Com cerveja, leva a certeza que o milagre do copo acabara de ser concebido.
No após, enquanto no Jd Leme o povo se dispersou. No Pirajussara, invadindo a noite, o churrasco de costela, parte de um pernil de carneiro e asas de frango, ardem vitória no carvão...
- Mééééé!
- Cocorocó!
- Muuuuugi, boi..
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