segunda-feira, 7 de setembro de 2009

O milagre do copo

Quanto mais penso, em dúvida maior fico. Será que sou um, dois em um, ou quantos na cabeça do pensar tomam parte?

Vai vendo. Eu repasso ideia pra carne não dormir. Que verdade se pode contar, que fantasia pode fluir?

- Ô motorista, abaixa o som! Eu quero ouvir a conversa, méééé!!!

- A viagem é longa, narrador de boa memória. Desfia tua história.

- Muuugi, boi, muuugi, boi...

- Cócorocó...

Em campo, na Vila Iasi, tarde de domingo ensolarado, as equipes do São Francisco e Bangu disputam uma vaga nas quartas de finais do concorrido campeonato de Taboão da Serra.

Lamentavelmente desfalcados, os times foram pro jogo sabendo que o empate mataria ambos abraçados.


Os torcedores divididos em distintos blocos alçam suas bandeiras e espalham olhares ansiosos por todo alambrado.


Roquinho, franciscano fiel, de coração corintiano, abandonou o prazer de ir aos grandes estádios, porém, mantém sua paixão pelo futebol varzeano. Compulsivo, não consegue ficar parado a um canto.


O confronto está duro de assistir. A bola, mordida e mascada, não chega aos atacantes. Roquinho coça a cabeça e se aproxima do boteco do Ebrinho:


- Ai, ai, ai, ai, ai: assim não vai, mas eu vou. Ebrinho! Põe aquela que matou o guarda, benta água pra aliviar a tensão. Quebra gelo da minha cerveja. Vê lá!

- Pura ou com limão?

- Cristalina.

Um copo em cada mão, e olho no jogo. Roquinho anuncia:

- O primeiro gole é do santo. Vai São Francisco!!!

Dá uma bicada. Em seguida outra. Pensamento firma e atento à jogada acompanha o meia Mauricio invadir a área, pela direita, pra arrematar no barbante:

– Gooool!!!

Roquinho, braços erguidos, agradece:

- Santa benzida, meu Deus. É gol! O meu santo não falha!

A vitória parcial de 1 a 0 motiva a peleja. O Bangu se lança ao ataque. O São Francisco recua. As divididas trincam mais fortes e irrita o torcedor:

– Esqueceu o cartão em casa? Juiz filho de uma quenga!

Malandramente, o árbitro controla o clima e encerra a etapa inicial.

- Quantos procriadores de gente lotam o ambiente? Não há pasto que chegue.

- Abre a janela pra ventilar a gripe suína, mééééé...

- Boi, segue sua prosa que a bola volta a rolar.

- Muuugi, boi. Muuugi, boi.

Roquinho está inquieto. O resultado mínimo o deixa aflito. Toma lugar ao balcão e pede:

- Ebrinho! Põe mais uma, no capricho!

Segue o ritual, benze o santo. E, ao inchar as bochechas, antes de engolir, teve as pupilas arregaladas diante do chute certeiro, no canto esquerdo, desferido pelo baixinho Lira.

Goool de empate, 1 a 1, vibra a torcida do Bangu.

- Não! Não! Não! Assim, não! Dá mais uma, Ebrinho, que o santo não entendeu! É pro lado de lá, meu santinho!

E tome Bangu! Forçando no ataque, buscando a virada. E tome a “marvada” goela abaixo, quando a bola em lançamento encontra o avante Ferreira, livre de marcação, frente ao goleiro são franciscano, em prenúncio fatal de gol:

- Meu santo, ficou bêbado, é? Entorta o pé do homem, entorta o pé do homem!

Com efeito, o chute saiu com defeito e pra linha de fundo a chance de gol é desperdiçada:

- Ô, meu Chico, fica são! Que susto! Ô santo milagroso, tá no fim do jogo e o empate nada adianta. Marca um gol pra mim que ao invés de um, eu te dou dois golinhos.

Bendita negociata! Rogério se antecipa à zaga e na saída do goleiro bate por cobertura. Arrepiante, a bola em declive descreve chuá na rede. Roquinho dobra os joelhos e no peito inflado desfere socos.

O grito ensandecido de gol fez saltar a artéria do pescoço, e apontando o dedo indicador para o céu profere vibrantes palavras:

- Nosso cavalo não é manco! São Francisco, porreta!

Rojões e abraços, o azul celeste celebra a classificação na vitória em 2 a 1.

Sapiência, dívida com santo se paga! A talagada escorre pela parede e causa indignação alheia:

- Que desperdício é esse? Tá cheio? Dá pra mim que eu tomo!

Mirando o nada, Roquinho engole o restante. Sozinho, caminha na algazarra formada ao longo do portão de saída.

O seu rosto estampa sorriso de quem sabe os mistérios. Com cerveja, leva a certeza que o milagre do copo acabara de ser concebido.

No após, enquanto no Jd Leme o povo se dispersou. No Pirajussara, invadindo a noite, o churrasco de costela, parte de um pernil de carneiro e asas de frango, ardem vitória no carvão...

- Mééééé!

- Cocorocó!

- Muuuuugi, boi..

Marco Pezão

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