segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Sentada no muro

I LOVE LAJE NO FOMENTO À CULTURA DA PERIFERIA

Venho de um lugar onde o riacho, a aroeira, a pedra e a terra têm vida.  Volto atenta pra me embrenhar nesse presente do Campo Limpo e quem sabe dele extrair o passado do limbo que minha mente protegeu.

A Estrada do Campo Limpo era a única rota conhecida. Então, quantas vezes será que passei de ônibus nessa Estrada, perto de um Jardim Umarizal, ainda descampado, entre os anos 1971 a 75, para dar aulas de Português no GECALI; no John F. Kennedy, no Francisco Ferreira Paes ou no Jardim Santa Emília?      

Certamente a lagoa existiu. Depois, com o aterro, o campo de futebol de várzea, mais tarde intitulado Centro Desportivo Municipal, recentemente convertido em Centro Desportivo Comunitário Cleuza Bueno. 

Na placa acima da arquibancada consta a data de fundação como 12 de maio de 1976, em plena ditadura militar, quando estava no poder, Ernesto Geisel. Tempos de bala, de silêncio e tortura. 

Daqui Chico Buarque cantava a Augusto Boal no exílio: “Aqui na terra tão jogando futebol, tem muito samba, muito choro e rock and roll”.

Ao chegar ao CDC, observo o campo invadido por espigões. Um oásis verde rodeado pelo deserto espremido de moradias verticais. 

O jogo entre o ADC Milianos do Morro do Piolho, capital, contra o CDC Jardim Rosana/ sub 18, não havia começado ainda.  Mesmo sendo um esporte inglês, o futebol de várzea adota um ritmo brasileiro. 

Além disso, vale recordar que “para os pobres os lugares são mais longe”, segundo Guimarães Rosa... Fato concreto na periferia, pois, no domingo, o ônibus escasseia.   

Aproveito pra percorrer a pista de caminhada Veio Aniba e procurar um resquício da lagoa aterrada, uma biquinha, que, conforme o papo entre Trinta e Pezão...

...ao mesmo tempo em que abastecia a sede dos jogadores, formava poças d'água no lado direito do campo, ali perto do escanteio, e provocava escorregões de “tirar a tampa” do joelho.

Caminho por entre as árvores e de lá quem é que avisto: você escarrapachada no muro.  

Não seria de sua índole debruçar-se na horizontalidade e fazer ali um repouso, com um nó circular que dá uma volta como chifre de búfalo para criar uma plataforma de onde brotam cinco novos troncos. 

Você precisava tomar fôlego pra continuar a crescer? 

Ou os parasitas dos arranha-céus amolaram tanto suas raízes que, vai ver, criaram um fenômeno vegetal surrealista: uma árvore que se senta no muro. 

Marca que ajeita um meio raro de se acomodar para respirar a fotossíntese e seguir viva? 

Garra você provou que tem! Ainda mais com o exemplo dos jogadores que aqui jogam, indo e vindo, esbravejando ao pique da torcida, que antes tocava surdo acelerando o ritmo da partida.

Hoje a grama é sintética, o samba virou pagode eletrônico, mas a 
comunidade varzeana resiste na amizade e no desejo de reunião que o CDC contém. 

E o termo várzea mantém até hoje um frescor na ideia de margear a liquidez afetiva das águas.  

Mas ali nesse campo do Cleuza Bueno a lagoa foi aterrada. A água da fonte virou um filete, por isso aplacar a sede agora, só com água engarrafada.

Mas ao me voltar para você sentada no muro, faço uma elucubração mental. Até onde iriam suas raízes? Pela sua altura, certamente, para debaixo de um daqueles prédios que rodeiam o campo. 

Sem a terra, perdida para os carros, suas raízes fizeram malabarismo pra se desviar das redes, do aterro, do concreto que deram vaga às garagens? 

Chama atenção seu nó revoltado numa ponta, justo a da esquerda, feito um grande chifre de búfalo em uma “instalação” inusitada. 

Um verdadeiro monumento artístico vegetal, bem ali no CDC Cleuza Bueno. 

E você árvore que senta sobre o muro me espelha?

Quem é que na vida conseguiu traçar uma linha reta e foi seguindo na verticalidade, ascendendo, sem se retorcer, sofrer baques, entortar a coluna, romper ligamentos, na mesma direção, sem nunca perder o traço? 

E vem da realidade os impactos que nos tiram do prumo, exigindo a mudança de rota, exigindo a parada pra pensar e, teimosamente, tentar um desvio, antes de se aniquilar.

Esse ser vegetal me obriga a pensar em sua idade. No tempo dessa contorção que você fez pra seguir viva e por que razão? 

Não sou bióloga. Só ensaio a ficção numa busca da fonte de água que ainda existe no canto do campo. 

Esse campo que, diferentemente da história européia, não é de concentração, nem significa o holocausto, mas a afetividade.  A busca dessa fonte que a fez como eu ter forças pra seguir viva?

No campo tem papo. Trinta conta que houve, sim, times femininos no Cleuza Bueno, mas aí, elas casam e o marido prefere a mulher em casa, com os filhos, preparando a comida que atraindo olhares alheios de cobiça... 

Se por um lado, há uma fala aberta no diálogo de quem organiza o espaço, como a de Binho, é claro que ali também há quem expressa, meio primitivo, um “papo de macho”, como um que ouvi, inadvertidamente, na arquibancada. 

Aquilo que representa um clichê na conversa de homens: um deles narrando aos demais o problema que teve com a gerência por seu desempenho ruidoso em um motel.  

Por outro lado, o CDC está aberto a ampliar-se a outras atividades de inclusão de gênero, abrindo-se a mulheres em diferentes faixas etárias que, assim como os homens, não possuem oportunidade gratuita de lazer nas proximidades do campo. 

Constato pela conversa com Binho as dificuldades com o entorno. Nem sempre novos moradores do bairro entendem o que significa um CDC, essa instituição típica da periferia e o seu caráter comunitário. 

Isso significa que não há funcionários para abrir o campo nos três períodos, ou para permitir uso particular ou indevido do espaço.

No bar, Trinta arruma tempo para papear com todos, mas quem não para no corre com os pasteis é sua mulher que, de tão atarefada, nem pude perguntar seu nome. 

Entre os seres humanos, a árvore que, sentada, vive na amizade estreita com o muro branco, se abanca e não perde um só jogo. 

Do lado contrário à arquibancada humana; de camarote, ela monta no muro pra participar da torcida. Mas pra quem ela torce? Para o Titânico? Jardim das Palmas? Jd Rebouças? Milianos do Morro do Piolho ou para o Jardim Rosana?

Ouço sua resposta que vem no vento: 

- Apelo para seguir viva e seja qual for o time feminino, infantil, veterano ou masculino, ampliar o alcance dessa cultura do futebol de várzea, aliado à poesia sem miséria. Ela vai viver além de você, de mim, expandindo a vocação do Centro como parque, arte e cultura periférica.

Olhar pra aquela árvore que se senta no muro naquele domingo no Umarizal me faz lembrar os labirintos que a vida oferece.  

A árvore que se apóia no muro, cobra de nós (nessa mirabolante performance pra seguir viva) o cuidado pra ver no campo da várzea um resquício da fonte circular que os indígenas Guarani, habitantes originários da América do Sul, ativam em seus rituais de canto e dança. 

Essa e outras diferentes culturas humanas acreditam que tudo tem vida e forjam uma existência voltada para o respeito ao vegetal, ao mineral e aos fenômenos naturais e entre si pensam no convívio e no coletivo. 

É um meio de acreditar que, rodeados de seres vivos, se aprende hoje com o riacho, amanhã com a pedra, ou aqui com uma árvore que, se sentou pra descansar o tronco, um modo simples de seguir buscando o sol.


Crônica e Foto da Árvore, de Alai Diniz, em 11/01/2017

DO CAMPO LIMPO AO SINTÉTICO

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