quinta-feira, 23 de abril de 2009

39 anos de Martinica


Nascido, de novo

Aquele domingo trouxe bojo inesperado. Céu em sol de consenso atroz, apaixonado.

O manto laranja, preto e branco descortinam triunfos. A bola salteia pés no batido pó vermelho.

O Martinica recebe o Vasquinho, time da Cidade Ademar.

Corre o ano de 1984, por aí. Fôlego nas pernas de minha meia idade.

Alam Preto, pela direita, enfia o cruzamento em profundidade...

O percurso de encontro à bola é vencido.

Desobediente ao desejo do goleiro adversário, envio mensagem à rede.

Registro 3 a 0. Tínhamos um 2º quadro de hábil desrespeito.

Exagerado fervor em defender a camisa, sim.

Em crer que tudo pode, pena há de ter.

Serpenteando alegria, a intriga. Discussão banal, palavras proféticas trouxeram à tona o pior dos suores.

Terminado o confronto, nem o banho foi capaz de dissipá-lo.

II

Não havia o boteco do Mazagão e alambrado. O time principal do Martinica mantinha a vitória em dia. Que dia!

Assistia sem perceber o casual precipício. Desci e fui ao bar do seo Carlos.

- Dá-me o de beber!

Ambiente lotado de supostos amigos. Imagens de um tempo que parecia sem fim...

Sem me dar conta o quanto estava próximo dele, era riso solto em meio aos líquidos comentários.

Vou cumprimentar o passageiro desafeto. O que acontece em campo termina nas quatro linhas, pensava.

Engano. Ao fundo, encostados na vitrine de doces, o grupo visitante bebia. Um saboreava vingança...

A mão estendida teve resposta cortante:

- Você não dá murro em ninguém, branco do caralho!

A provocação proferiu reação imediata. Solto golpe à boca, justificado proceder.

Ninguém entendeu, nem eu.

Muito menos quando o sujeito, em ato instantâneo, levantou a camisa...

E da cintura sacou um revólver calibre 32.

Pânico e volver. Rastro em fuga pairam olhares febris.

III

Tola e bestial confiança em defesa do revide.

- Cipó, você tem um revólver?

- Dadá, você tem um revólver?

Pegos na surpresa, não deram fé no acontecido que mal soube explicar.

Nunca havia agredido alguém, quanto mais empunhado uma arma.

Por um segundo de luz, achei atravessar o campo e sumir barranco adentro...

Insípida mente. A sacola com a chuteira esquecida no balcão foi motivo de retorno...

Ninguém entendeu e nem eu.

Em posse dela, na calçada, descoberto, acreditei na idéia...

Recebi a volta do murro na boca.

E vi a mão parda tingir o revólver.

Invadi o bar em busca de refúgio.

Qual? A pequena sala de bilhar não dava a lugar algum.

As bolas sobre a mesa não eram munição adequada.

Em última instância entrei no banheiro.

IV

Mirrado e obscuro banheiro. Antigo, de porta vazada acima e em baixo.

O ferrolho enferrujado não fechava nunca.

No desespero em torná-lo útil, forcei. Deslocada a trava, travada perseverança, aloucada tentativa em manter a pele.

O rival chegou. Alvo cadáver antecipado. Eternizado instante. A escuridão me acolheu.

Rente à coluna do lado direito da porta, feito uma tábua, estreitei não sei como...

Percebi sua presença a espreitar minha presença.

Os tiros perfurando meu pensamento.

Pá, acima.

Pá, abaixo, procurando...

Pá, de um lado.

Pá, de outro.

Os furos na porta.

Espremido declinei a única esperança que resta ao moribundo:

- Meu Deus, me livra dessa.

V

Silêncio aterrador em eco de minutos.

Foram?

Em seguida, pancadas de arrombamento.

Voltaram?

O inimigo trouxe reforço, acreditei.

E exerci pressão contrária.

- Agora fodeu. Não morri no tiro, vou morrer na porrada!

A força maior venceu. Estático como nuvem, cedi.

O rebento fez corte de sangue não percebido em minha mão.

Não era o que eu temia. Relembro rostos apavorados, Tostão, Dori, Tuica...

- Onde foi o tiro? Onde acertou o tiro? O sangue?

Apalpei meu corpo à procura de feridos.

O buraco na velha camisa azurra da Itália, campeã de 1982, manchada de sangue.

- Onde foi o tiro? Onde acertou o tiro? O sangue, insistiam eles...

Rompo em trêmulo sustenido:

- Dá um tempo pra minha cabeça...

Frase conservada pelo Tostão até que a morte o levou, anos depois.

Algumas pessoas já choravam meu infortúnio. Fiquei contente.

O irmão do Mané CMTC me deu carona ao sair do incidente.

Calafrios no percurso. Medo dormido no sofá.

Tornei a jogar dali duas semanas.

Na sacola da chuteira encontrei um projétil.

O craque Alan Burrinho estampou-me o título de uma novela da época:

- O homem que nasceu de novo...

Mais de um mês após, o amigo e taxista Amauri, atento aos fatos, me visitou.

- Estou contando conforme ouvi. Recém saído da cadeia, problemas de rua mataram o cara.

Eu, na graça de arrependimento, cogitei:

- Que Deus o tenha, morto!

3 comentários:

  1. ´ Pe gostei muito desta narrativa, sobre esta caminhada ao longo destes anos do martinica.

    Parabens!

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  2. Olhaí, Pezão:
    só pode escrever as verdadeiras histórias das quebradas do mundaréu, quem tem a crônica do subúrbio tatuada na própria pele.
    (Que sufôco, hein?, mano!!!)

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  3. sÓ VC PESÃO, OUVI FALAR MUITO DESTAS HISTÓRIA NO BARRANCO, MAS O PESSOAL DA COMUNIDADE SEMPRE SE SAIU BEM .VALEU MANO

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