- Ainda, o Jardim Santa Clara conserva tranqüilidade de cidade do interior.
Na praça, em frente à capela, os jovens se encontram. Ouvem músicas, cantam, dançam, e não raro os amores florescem entre os casais.
Adiante, a sorveteria do Gaspar. O concorrido cinema. O teatro onde companhias se instalam em temporadas. Ocupando a esquina principal, a antiga padaria do seo Manoel produz o melhor pão de milho de toda região.
Sim, Santa Clara se mantém quase alheia às transformações da vida moderna. Pena que a televisão vá modificando o sotaque ali característico.
Mesmo assim, mantendo a tradição, as famílias conservam hospitalidade e se reúnem para o almoço domingueiro ou festejo de dia santo.
O fato é que próximo da praça, numa rua transversal, mora dona Tereza. Mãe de dois filhos, cujo marido meteu-se em negócio de caixeiro viajante e sumiu a vista de todos.
Ela, senhora de trinta anos, encara as dificuldades com talento no preparo de doces e salgados.
Simpática e cuidadosa consegue dar sustento a casa, e aos meninos Toninho e Agenor, de 11 e 9 anos.
Verdadeiros pentelhos. Pois não há duas pequenas almas mais endiabradas. Arte praticada por adultos é obra. Se por crianças é travessura. No lugarejo, a dupla é amplamente reconhecida.
Choque elétrico em gatos. Rato na gaveta da mesa da professora. Sapos nas mochilas das colegas de classe. Trocas de material escolar. Sumiço de lanches...
Nó em roupas penduradas nos varais. Fechaduras de portas tampadas com chicletes. As brincadeiras valem reprimendas, mas eles não se emendam.
Pneus de carros esvaziados. Assentos do cinema lambuzados de graxa. Nem a batina do sacristão é poupada. Um dia apareceu cheia de açúcar e repleta de formigas.
Até o vinho sagrado fora substituído por refresco.
Tudo que é peraltice, Toninho e Agenor praticam.
A ausência do pai é a explicação dos temperamentos arredios. Em consideração a mãe, a vizinhança é paciente.
São crianças, explicam. Amanhã ou depois tomam jeito. É certo, porém, que umas boas palmadas não iam mal!
Dona Tereza é incapaz de levantar a mão aos filhos e sofre. Pois qualquer caso inusitado que aconteça no vilarejo, de imediato os culpados são eles.
Mas eis que um padre austero assume a igreja local. Traz fama de exigente quanto à disciplina das ovelhas rebeldes do rebanho de Cristo.
Por conselho das vizinhas, dona Tereza resolve enviar Toninho e Agenor a uma sessão. Padre Afonso é alto e forte. Tem olhos miúdos, a barba cerrada e a cara quadrada.
Não ri por nada. E seu oficio é regido de forma incontestável.
Ambos chegam temerosos, e notam falta das imagens nas paredes. Não sabem que estão sendo restauradas.
De feitio peculiar, a pergunta inicia o sermão. Padre Afonso encorpa a voz e brada:
- Onde está Deus?
A resposta: Deus está em nossos corações não veio.
Com os braços estendidos acima da cabeça, o clérigo vibra intencionalmente a vara no ar:
- Onde está Deus? - Repetiu em tom rigoroso.
Um duplo susto. Os meninos não esperam por mais. Saem correndo da igreja e só param em casa quando dentro do guarda-roupa.
Dona Tereza, que já se preocupava com a demora dos filhos, os encontrou trêmulos:
- O que aconteceu?
- Mãe, agora a gente tá encrencado! Deus sumiu, e o padre acha que a culpa é nossa!
- Muuugi boi, muugi...
- Cócórócócó...
- Mééééé...
Marco Pezão (midraxe hagadá)