Agora não bichão! Agora sou eu. Pode buzinar à vontade. A preferencial é minha...
No retrovisor dou uma geral nos passageiros e a lotação está quase completa. Reconhecendo semblantes, percebo os que fazem hoje o percurso.
Quantas histórias permeiam sentimentos confusos abrigados no íntimo? Um contêiner em movimento carregando sonhos e dramas.
O principal desafio no amor é conviver com as limitações de cada um, não é não casal vinte? Sentados à esquerda, ambos mantém os olhos voltados pra janela, pintando nova paisagem além dela.
Em ser resultado de circunstâncias. Circunstâncias que operam, imperam, e cedo ou tarde pedem respostas. Desta luta não há como correr. Os rounds são aflitos. O eu deve sair vencedor ou o corpo tomba vencido.
Alexsandro Papel tem a cabeça recostada e os olhos fechados. Não dorme. Trilha o fio da amargura. Hesita o passo e sabe que é preciso prosseguir pra resolver de vez o estranho dilema.
- Que ventre me pariu? Que ventre me pariu? Que ventre me pariu? Não tenho resposta. Quem me pariu? Só uma coisa é certa. Foi uma boceta que me pariu. Cagado é que não fui. Impossível localizá-la?
Mãe! Quem, diabos, é minha mãe?
- Aproveito o farol vermelho pra dizer que a pergunta sem a devida resposta é o martírio vivido por Alexsandro.
Menino bom, bem criado, apesar da ocorrência inédita em seu desenvolvimento desde a inseminação e gestação.
- Bebê de proveta! Bebê de proveta! Bebê de proveta! Inseminado! Eu não fui trepado. Eu vinguei punhetado!
Egoístas. Egoístas é o que eles são. Nunca mais quero vê-los. Não me dão o direito de conhecer o verdadeiro pai, quanto mais a pobre moça transformada em barriga de aluguel.
- Dona, a senhora desce essa rua e vira à direita. A Assistência Social é logo em frente. Por nada, tchau!
No caso do Alexsandro deu pra sentir o drama? Os pais só revelaram a verdade sobre sua origem quando o jovem ingressou na faculdade.
Até então, ele acreditava que fora adotado por consequência do falecimento materno.
E não esperavam uma reação tão intempestiva. Em poucos meses o estresse falou mais alto e Alexsandro largou tudo.
Estudo, roupas, sapatos, livros. Saiu com a vestimenta do corpo e algum dinheiro usado pra alugar o cômodo e cozinha pra morar.
Mas, mesmo distante do motivo que o transtornara, nada adiantou. O problema está nele.
- Tiveram a pachorra de se masturbarem. Depois pegaram as porras e as misturaram no mesmo tubo de ensaio.
Efetuada a análise e o processo seletivo, qual espermatozóide ganhou a condição de ir fecundar o óvulo da minha mãe desconhecida?
Quem é meu pai?
O meu próprio nome é fruto dos dois. Alex e Sandro. Do nome deles nasceu o meu: Alexsandro Carvalho Amorim. Carvalho de um. Amorim do outro.
Pedi que fizessem o exame DNA. Eu quero saber em definitivo, quem é meu pai? Já que não posso conhecer minha mãe!
E qual foi a resposta? Disseram, você é privilegiado. Têm dois pais que são duas mães só pra te paparicar. Tudo, com eles, é brincadeira:
– Olha, Alex, os olhos do Sandrinho. O jeito de olhar é seu.
- Ah, Sandro! Todo mundo diz que a testa dele é sua. Sem tirar nem pôr.
- Ô 125! Faz esse povo andar! Vamos liberar a passagem, gente!
É complexo o caso do amigo. Os pais, homossexuais, decidiram ter, criar, e amar um filho só deles. Conceituados em suas carreiras, um é médico e o outro advogado, utilizaram meios modernos para realizá-lo.
- Se ao menos tivessem guardado o endereço da moça minha mãe. Não importa ser tecnologicamente projetado. Permitissem visitá-la!
Pude sentir o bico do seio dela amamentando minha boca, durante quanto tempo? Três meses e então secou o leite? Não posso acreditar que depois, secado o leite, seco estava o amor de minha mãe?
Nunca mais, em nenhum momento, houve por bem pensar em mim? Não creio que exista mãe assim. Eles, sim, são culpados.
O dinheiro tudo compra. O suborno tange o silêncio. Alugaram a barriga dela como se compra um guarda roupas? Minha doce mãezinha pudera te conhecer...
- Ô motorista! Não cabe mais gente aqui não. Vai parar em todo ponto?
- Falta de consideração!
- No fundo do ônibus tem lugar vazio! Tá todo mundo na catraca. Ô 125, parece que você tem mel?
- Tem um homem encalacrado aqui no meio! Força, meu senhor, é preciso desobstruir a passagem!
Acho que não vai dar, 53! O homem é muito gordo. Não passa na catraca. Vai ter que voltar e descer pela porta dianteira.
- Meu Deus do céu, agora enfezou. Nem pro baixo e nem pra riba.
- Se der atenção aos ocorridos, chora e ri. Dou meu ouvido, mas entra de um lado e sai do outro. Nem sempre, é certo. Têm histórias comoventes, doentes, excitantes, que me fazem pensar.
No caso de Alexsandro, a ferida existencial segue exposta.
- O dinheiro me proporcionou as melhores roupas. Colégios particulares. Casa na praia. Carros. Conforto.
E não posso deixar de reconhecer o carinho e cuidados com meu bem estar. Sim. Eu gostava daquela mutação diária.
O Sandro tornava-se Sandra. O Alex travestido em ternura aduladora. Confesso, em soberbo amor me deleitei. Os via como duas mães, só minhas. Ora eram dois pais somente meus.
Sentia-me pleno, seguro sob as asas daquela estranha paixão. Amavam-se sinceramente, abertamente, e não temiam observações maldosas sobre o amor que praticavam.
A casa, costumeiramente, recebia tantos amigos. Amigas zelosas, que, entre prosas e risos, me excitaram a descoberta do sexo.
Havia no quintal muitas plantas, os cachorros, e a paz teceu clima durante minha infância e adolescência.
Mas não posso deixar de observar e isso magoa. Não passo de uma experiência. O desenvolvimento de um bebê de proveta. Articulado e premeditado friamente.
Um clone satisfazendo desejos deles, banais!
A revolta fez liga em meu sangue, creio, oriunda do gen materno. Avancei adiante e olhando pra trás vi a redoma. Compreendi a falsa felicidade, na qual estive mergulhado quanto tempo.
Senti-me marionete, uma marionete, marionete, e entendi ser preciso cortar os fios atados àquelas mãos hábeis, manipuladoras, capazes de persuadir as regras de Deus.
Não! Eu serei o que quero ser! Se uma folha em branco significa ser alguma coisa, então sou! Do contrário, eu escrevo minha vida nela. Eu! Tomaram ciência? Eu! Enfim, o bebê saiu da proveta!
Sofram! Eu sofro também. Se ao menos pudesse saber quem é minha mãe? Qual ventre me pariu?
- O trânsito está infernal. Essa orquestra de buzinas não resolve, irrita, e o melhor a fazer é não esquentar a cabeça.
Alexsandro continua preso em sua concha. Repassa e examina anseios contraditórios. Chegará ao ponto final ou desce em meio ao fluxo e faz da multidão o habitual esconderijo?
- Quer chegar pra frente, por favor. Tem espaço ali e o senhor não sai detrás de mim?
- Não tenho culpa, moça. Está apertado. Dá licença que eu passo!
- Isca. Pega!
- Que cheiro esquisito é esse?
- Quem foi o cara de pau que soltou o pum?
- Muuugi boi. Muuugi boi. Muuuugi....
-Auuuuuu....
Marco Pezão