quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Cantando o amanhecer

Em sermos discriminados, nós fumantes apreciadores de um boteco. Na mesa, do lado de fora do bar do Neto, conversamos. Eu, Valentim e o Rogerio. Conversa vai, o trago vem. O celular do Valentim toca. O soar é de um galo cantando. Então, pra eles, relembro a crônica publicada na Gazeta do Taboão:

Cantando o amanhecer

Na sexta feira, minha mulher, florista, fazia os arranjos costumeiros. Cortava o cabo das rosas, em diagonal, para se hidratarem melhor.

A garagem transformada em floricultura abriga longo cotidiano, tempo fecundo de nossa relação. Não tanto economicamente, e, sim, por respeito e amor às atitudes adquiridas no convívio.


Na mesma calçada, a Cimecan, distribuidora de cimento, é relação de amizade sempre próspera.

Luiz, empregado de boa relação na vizinhança, chega ao nosso comércio tendo sob o braço um jovem galo:


- Dona Otília, um amigo, caminhoneiro, trouxe do interior e me deu de presente. Levei pra casa, mas, a senhora sabe, a dona Onça, quando viu o bicho aqui, ficou fula. Ela exigiu que eu o jogasse na rua. Então, estou trazendo pra ver se a senhora quer fazer proveito.


Não precisou falar duas vezes. Com o sorriso costumeiro abraçou o galeto e agradeceu. O levou pro quartinho que há no fundo de casa, pensando, claro, como boa cozinheira que é, em fazer uma panelada pro almoço domingueiro.


Quando cheguei à noite me fez saber a novidade. O penoso vermelho estava num canto, de crista empinada, receoso, talvez, quanto ao seu destino já traçado.


Na manhã de sábado acordei cedo e coava o café, como de costume. Surpreso fiquei ao ouvir o galo cantar, assim que o clarão do dia começou a surgir.

O bairro é totalmente urbanizado e há muitos anos que ninguém cria galinhas ou tenha um galo no quintal.


O trabalho me leva longe de casa todos os finais de semana. E o domingo já estendia a malha da tarde quando cheguei pro almoço.

Olhei a água fervente à espera do macarrão. E, noutra panela, o molho recheado de bracholas. Minha mulher estava sentada junto à mesa e antes que dissesse palavra, perguntei:

- O prato não é o galo?


Apontando a cachorra que ao meu lado abanava o rabo, bradou:


- Você não sabe o que a Mila aprontou? Fui ver o galo e deixei a porta um pouco aberta. Essa sem vergonha passou entre minhas pernas e avançou no coitado. O galo tomou um susto e voou sobre minha cabeça. Ela correndo, eu atrás, e ele com medo fugiu pra laje. De lá foi pra casa do “seo” Severino, depois pro telhado do “seo” Nelson, passou pela casa do sapateiro e se empoleirou no muro da Belíssima.


E, arrematou, ameaçando a cadela:

- Fora daqui, Mila! Se você entrar na cozinha, eu vou te dar uma surra, sua enxerida!

Subi na laje e não dava para avistar o fugitivo. Otília continuou:

- Fui lá no ”seo” Juan, o muro é muito alto. Pus milho no chão, agora é esperar ele descer na hora que der fome. Coitado do Pavaroti, vai passar a noite no relento.


- Pavaroti?


- É, apelidei o galo de Pavaroti. Ele canta tão bem.


A Belíssima, eu explico, é um
night club. Casa de muitas mulheres, drinques, coisa e tal. Fiz a piada. O galo Pavaroti, de bobo não tem nada. Ele foi se empoleirar no terreiro onde estão quem? Ora, as “galinhas”...

Otília nem sorriu e franzindo a testa, sapecou:

- Só falta você dizer que vai caçar o galo, hoje à noite, na Belíssima?


Veio a manhã de segunda feira, 9 de julho, e o cantar do Pavaroti indicava que ele não havia ido parar em panela alheia.

Fizemos uma busca frente ao local e o imperioso continuava sobre o muro.


Dona Nilza, uma das vizinhas, comentou:

- Vocês ouviram? Hoje acordei com um galo cantando. Me lembrei do sítio de papai.


- É o Pavaroti, respondia Otília a todos que notaram a presença do raro cantador.

Passado umas horas, decidi com meu afilhado:

- Vamos a caça, senão adeus galo.


Entramos no quintal da Belíssima graças ao faxineiro que lá trabalha. Explicamos a situação e encontramos o Pavaroti empoleirado no galho da enorme mangueira.


Ágil e armado de um cabo de vassoura, o menino Feliz escalou e ganhou altura para cutucar o penoso arredio, que bateu asas pro meio da estrada do Campo Limpo.


Entre os carros que passavam, armamos uma correria só. Fomos atrás dele, estrada acima e abaixo, sob risos daqueles que viam a insólita perseguição.


E, se juntaram a nós, o moço da auto-escola, a Otília, dona Nilza, gente que circulava, até a Celeste, que faz jogo do bicho, já tinha o palpite certeiro:

- Vai dar galo na cabeça!


Por fim, cansado, o Pavaroti se enfiou num pequeno jardim, repleto de coroas de cristo, em frente a casa da dona Arminda. Cercado, tentei pegar a presa, com cuidado, para não me ferir nos espinhos e uma possível bicada.


Ai! Que força demonstrou o galo. Num arremedo voltou a voar, atravessou a estrada e pousou na entrada da nossa floricultura. Ficamos todos em silêncio para não assustá-lo. Fervorosa, Otília pediu:

- São Salonguinho! Faz ele entrar que eu dou três pulinhos!


Não sei se foi o santo ou as plantas, como possível refúgio. Ele entrou e abaixamos a porta para não sermos surpreendidos.

Otília tratou de pegá-lo e rapidamente cortou suas asas, enquanto eu amarrava uma fita aos seus pés.


- Ufa!

O galo Pavaroti tornou-se atração naquele feriado. Alguns já o viam fervendo num caldo com batatas.


- Vamos matá-lo, agora? Como? Destroncar o pescoço? Mas, ele canta tão bonitinho!


Em face do ocorrido, rimos, e louvado sentimento ditou a sentença:


- De tanto lutar pela liberdade, o Pavaroti merece viver.


E assim, na redondeza, o amanhecer ganhou mais vida na voz do intrépido cantor!


- Cocorocó!